Brejo, Sertões e Veredas


Brejo da Madre de Deus. Início dos anos 70. “Tirando religião, assombração e macumba, o povo daqui só acredita no que vê. Micróbio? Nada! Bicho, só de muriçoca pra cima. O resto, acham que é invenção da gente”, disse Rui, aliás, Dr. Rui, que o homem agora era médico. Recém-formado, mas era.

Rui era gordo, agitado e falante. Fazia de tudo um tanto. De clínica geral a pequenas cirurgias, passando por parto e incursões veterinárias. Naquele dia mesmo, tinha feito cesariana numa porca. Como pagamento, ganhara dois bacuris. E foi logo me convidando para o churrasco dali a um ano. Perdi a comilança e nunca mais tive notícias de Dr. Rui.

Naquele tempo, o Brejo era encantador. E o encantamento começava já no caminho. Até Fazenda Nova, paisagem agreste: “Vistas de longe, essas pedras / de irregulares tamanhos / são lembranças renascidas / de abandonados rebanhos. // (...) Apenas o sol se move / nessa paisagem sem bois, / sem cabras e sem ovelhas, / sem antes e sem depois. // Ainda mais duas coisas / pode esse campo lembrar: / um cemitério sem corpos / ou um leito de mar, sem mar”*.

De Fazenda Nova pra lá a paisagem mudava, como um cenário. A estradinha agora era de areia branca, igual à de praia, estreita e sinuosa, com subidas e descidas, mais subidas, margeada por cercas vivas e árvores por todo o percurso; parecia ilustração de livro infantil. Quando a gente menos esperava, um vale. E no vale, incrustada, a cidadezinha do Brejo. Brejo da Madre de Deus.

No casario colonial, os azulejos monogramados nos diziam que ali já tinha havido opulência. Na pracinha, a igreja. A cadeia, um prédio antigo e imponente, no alto, vazia. “Aqui não tem crime”, disse Dr. Rui. “No máximo, briga de marido e mulher ou bêbado de fim de feira que vai pra lá curar a cachaça. Quando é questão de cabaço e o sujeito é solteiro, o delegado casa na hora. Se o cabra já for casado, o pai da donzela resolve”. Num sobrado, o hotel (Grande Hotel, se não me falha a memória). Em frente ao hotel, uma bomba de gasolina, ainda de manivela.

Dois passeios. Subir até o Cruzeiro para apreciar a vista, e tomar banho de bica numa pequena queda d’água que chamavam de cachoeira. Cumpridas as obrigações, por assim dizer, turísticas, o bom mesmo era passear pela rua, sentar na pracinha, conversar com Dr. Rui e ouvir as pessoas. Noites de temperatura sempre amena. Friinhas, até.

Não tenho nenhum dado estatístico sobre o Brejo daquela época. Não sei sobre renda per capita, analfabetismo, mortalidade infantil, longevidade, nada. Mas parecia-me uma gente de bem com a vida. Saudável, pelo menos até onde se podia julgar as aparências. Muito diferente da gente da Zona da Mata, onde passei férias na infância.

Tenho simpatia pelos sertões, desde antes de ler Euclides da Cunha (e, na sequência, Guimarães Rosa). O sertanejo “não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Foi ele, o sertanejo (e não o nordestino de outros cantos), que Euclides disse que era antes de tudo um forte. É uma gente estóica, “moldada pelo determinismo geográfico”. Nas regiões de brejo, menos estóicos, por certo. A geografia não lhes exige tanto. Verdadeiros oásis. Se a chuva não chega, os olhos-d’água garantem a água de beber e sempre sobra um pouco para os animais e plantações.

No Brejo da Madre de Deus (e em Triunfo também) vi de tudo, não só feijão, milho e mandioca, mas frutas do litoral, como manga, banana, caju, goiaba e coco. Até mangaba e pitanga, pode crer. Por isso é chamado de brejo. E o povo, brejeiro.

Nunca mais voltei ao Brejo da Madre de Deus. Por falta de oportunidade, talvez. Ou por prudência, que é o mais provável. Melhor, mais garantido ficar com o Brejo da minha memória. A estradinha, o casario, a cadeia vazia e as conversas com Dr. Rui.

*Do poema Fazenda Nova, de Carlos Pena Filho

Por Joca Souza Leão, publicitário e cronista
Publicado no seu Blog Crônicas do Joca

Foto: Roberta Rêgo

Postado por Gabriel Diniz

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