
"No seu romance Roliúde, “picaresco, aventuroso e cinematográfico”, Homero Fonseca deu vida a Severino Ramos Soares da Silva, Bibiu, “calculadamente nascido” em 1911, “mulherengo, enrolão, devasso, estróina, pobretão, raparigueiro, mentiroso e chachaceiro”, de quem se tem a última notícia com 85 anos de idade, terminando de contar sua história em 1996.
Bibiu assistia a filmes e os contava em rodas que formava em ruas, feiras, bodegas, puteiros e casas de família, passando depois o chapéu. No livro aparecem suas narrativas de “Em busca do ouro”, “Casablanca”, “E o vento levou”, “O ébrio”, “Sansão e Dalila”, “King Kong”, “A dama das camélias”, “No tempo das diligências”, “Tarzan, o Rei da Selva” e “Aviso aos navegantes”. Ele também foi locutor de parque de diversões e de circo, homem da cobra e mago de tarô com o nome de Bibiukoviski.
O personagem viveu o encantamento inicial da 7ª arte e das linhas férreas, ficando aí demarcado o tempo das suas presepadas e o campo das suas preferências, pois para ele as três coisas melhores do mundo eram mulher, cinema e trem. Bibiu é habitante do interior de Pernambuco e a narrativa é marcada por um saboroso saltitar de palavras matutas, muitas caídas em desuso. Mas no romance de Homero não aparecem as marcas chapadas do cangaceirismo, do bucolismo e do passadismo.
Ele se situa na atmosfera típica dos interioranos que convivem nos centros das cidades, os pracianos, ou os suburbanos das capitais. Os cenários são a feira, o trem, a bodega, a praia, o cais do porto, a igreja, o fiscal, a polícia, o quartel, o puteiro, a família. As andanças de Bibiu incluem episódios que se desenvolvem no Recife e em São Paulo, onde se torna torcedor do Coríntians e amigo de um comunista que termina preso e desaparecido.
A trajetória de Bibiu é uma seqüência de presepadas com tintas de cordel, circo, cameloagem, programa de rádio e chanchada, envolvendo punhetagens e sarros de adolescente, serviço militar, galinhagens de adulto, casamento, traição, cornice, carolice, mexericagem, vingança de corno brabo e acontecências da política, como a Revolução de 1930, o Estado Novo, Getúlio Vargas, o levante de 1935, o fantasma do comunismo, a 2ª Guerra Mundial, a presença norte-americana em Pernambuco e o impacto da Coca-Cola, bebida predileta do padre da Igreja de Santo Antônio da Consagração, que a usava na missa em lugar do vinho e só foi descoberto por causa dos arrotos na hora do sermão. Bibiu se gabava de ter conhecido “pessoas principais, gente importante e intelectual”.
Dizia que sabia fazer “carinhos experientes”. Espantava-se com “um usineiro que gastava com as putas numa noite o que não pagava de salário por mês de labuta dos seus trabalhadores”. E ao ser contestado por um repórter quando disse que tinha prendido Hitler na Alemanha, protestou: “Veja só como tem gente ignorante nesse mundo, querendo estragar uma boa história por um detalhezinho de nada.” Circulando nas vielas onde vive “o povinho temente a Deus e ao governo”, Bibiu recolheu os elementos da sua filosofia, que vai destilando ao longo da história. Aqui, algumas amostras.
Sobre o ofício de viver: “uma desgraça de condição humana... iguala tudo: branco e preto, moço e velho, principal e pequeno”, “na hora do perigo, santa e puta é tudo igual”, “por mais ruins que estejam as coisas, sempre podem piorar”, “com governo, polícia e mulher baixinha não se brinca”.
Sobre amor e mulher: “fico mais balançado vendo uma nesga de coxa do que quando me deparo na praia com aquela danação de mulher quase nua, mostrando as femeíces para todo mundo ver. Bom mesmo é a gente ver um pedacinho e desenhar o resto na cabeça”, “peguei a calcinha, atochei no nariz e respirei fundo. Aquele cheirinho meio salgado, meio azedo, meio quente, meio morno, acendeu a minha venta como se eu tivesse tomado um porre de lança-perfume Rodouro”.
Sobre cornos e cornice: “Essa igreja aí, seu Bibiu, é a maior fábrica de corno que eu conheço”, “nem todo mundo que bebe é corno, mas todo chifrudo enche a caveira pra agüentar o rojão”.
Macaco velho e escolado, Bibiu não iria vacilar na hora de escrever sua história. Seguindo sua filosofia, foi atrás de Homero Fonseca, pois sabia que ele tinha “olho treinado, paciência e interesse”. Em Roliúde se lê que “o grande escritor de folheto, horoscopista e almanquista Jota Ferreira de Lima, dizia que o povo tem necessidade de história como tem necessidade de comer e beber”. A história de Bibiu/Homero é mais do que necessária. E faz muito bem comê-la e bebê-la."
Artigo do jornalista e escritor MARCELO MÁRIO DE MELO, publicado no Jornal do Commercio, do Recife, de 12 de dezembro de 2007.
Bibiu assistia a filmes e os contava em rodas que formava em ruas, feiras, bodegas, puteiros e casas de família, passando depois o chapéu. No livro aparecem suas narrativas de “Em busca do ouro”, “Casablanca”, “E o vento levou”, “O ébrio”, “Sansão e Dalila”, “King Kong”, “A dama das camélias”, “No tempo das diligências”, “Tarzan, o Rei da Selva” e “Aviso aos navegantes”. Ele também foi locutor de parque de diversões e de circo, homem da cobra e mago de tarô com o nome de Bibiukoviski.
O personagem viveu o encantamento inicial da 7ª arte e das linhas férreas, ficando aí demarcado o tempo das suas presepadas e o campo das suas preferências, pois para ele as três coisas melhores do mundo eram mulher, cinema e trem. Bibiu é habitante do interior de Pernambuco e a narrativa é marcada por um saboroso saltitar de palavras matutas, muitas caídas em desuso. Mas no romance de Homero não aparecem as marcas chapadas do cangaceirismo, do bucolismo e do passadismo.
Ele se situa na atmosfera típica dos interioranos que convivem nos centros das cidades, os pracianos, ou os suburbanos das capitais. Os cenários são a feira, o trem, a bodega, a praia, o cais do porto, a igreja, o fiscal, a polícia, o quartel, o puteiro, a família. As andanças de Bibiu incluem episódios que se desenvolvem no Recife e em São Paulo, onde se torna torcedor do Coríntians e amigo de um comunista que termina preso e desaparecido.
A trajetória de Bibiu é uma seqüência de presepadas com tintas de cordel, circo, cameloagem, programa de rádio e chanchada, envolvendo punhetagens e sarros de adolescente, serviço militar, galinhagens de adulto, casamento, traição, cornice, carolice, mexericagem, vingança de corno brabo e acontecências da política, como a Revolução de 1930, o Estado Novo, Getúlio Vargas, o levante de 1935, o fantasma do comunismo, a 2ª Guerra Mundial, a presença norte-americana em Pernambuco e o impacto da Coca-Cola, bebida predileta do padre da Igreja de Santo Antônio da Consagração, que a usava na missa em lugar do vinho e só foi descoberto por causa dos arrotos na hora do sermão. Bibiu se gabava de ter conhecido “pessoas principais, gente importante e intelectual”.
Dizia que sabia fazer “carinhos experientes”. Espantava-se com “um usineiro que gastava com as putas numa noite o que não pagava de salário por mês de labuta dos seus trabalhadores”. E ao ser contestado por um repórter quando disse que tinha prendido Hitler na Alemanha, protestou: “Veja só como tem gente ignorante nesse mundo, querendo estragar uma boa história por um detalhezinho de nada.” Circulando nas vielas onde vive “o povinho temente a Deus e ao governo”, Bibiu recolheu os elementos da sua filosofia, que vai destilando ao longo da história. Aqui, algumas amostras.
Sobre o ofício de viver: “uma desgraça de condição humana... iguala tudo: branco e preto, moço e velho, principal e pequeno”, “na hora do perigo, santa e puta é tudo igual”, “por mais ruins que estejam as coisas, sempre podem piorar”, “com governo, polícia e mulher baixinha não se brinca”.
Sobre amor e mulher: “fico mais balançado vendo uma nesga de coxa do que quando me deparo na praia com aquela danação de mulher quase nua, mostrando as femeíces para todo mundo ver. Bom mesmo é a gente ver um pedacinho e desenhar o resto na cabeça”, “peguei a calcinha, atochei no nariz e respirei fundo. Aquele cheirinho meio salgado, meio azedo, meio quente, meio morno, acendeu a minha venta como se eu tivesse tomado um porre de lança-perfume Rodouro”.
Sobre cornos e cornice: “Essa igreja aí, seu Bibiu, é a maior fábrica de corno que eu conheço”, “nem todo mundo que bebe é corno, mas todo chifrudo enche a caveira pra agüentar o rojão”.
Macaco velho e escolado, Bibiu não iria vacilar na hora de escrever sua história. Seguindo sua filosofia, foi atrás de Homero Fonseca, pois sabia que ele tinha “olho treinado, paciência e interesse”. Em Roliúde se lê que “o grande escritor de folheto, horoscopista e almanquista Jota Ferreira de Lima, dizia que o povo tem necessidade de história como tem necessidade de comer e beber”. A história de Bibiu/Homero é mais do que necessária. E faz muito bem comê-la e bebê-la."
Artigo do jornalista e escritor MARCELO MÁRIO DE MELO, publicado no Jornal do Commercio, do Recife, de 12 de dezembro de 2007.