OUTRA DESPEDIDA


Uma vez um aluno meu se aproximou de mim e perguntou:− O que você é de Marcos Suassuna?

− Filha, respondi.− Veja o que eu trouxe para você ver!E me entregou uma coleção de receitas médicas escritas com uma letra firme que eu bem conhecia, enquanto acrescentava:

− Teu pai foi pediatra de minha mãe; quando ela era pequena, teve uma doença grave e teu pai a salvou... Por isso estou aqui... Acho tua letra tão parecida com a dele...

Foi minha avó que guardou essas receitas...Eram muitas; na verdade, havia ali todo o percurso de uma infância e suas inescapáveis injunções: leitinhos, sopinhas, analgésicos, dietas, antibióticos...Sem as receitas, ao longo desses anos todos em sala de aula, isso aconteceu inúmeras vezes e sempre me emocionou muito – ver assim tão concretamente a justificativa da seqüência milagrosa das gerações e revisitar em mim as marcas fortes de meu pai.No último dia 15 de maio, ele partiu.
Tinha 86 anos, uma vida completa e a maior de todas as fortunas – o reconhecimento. Seus pares e seus incontáveis clientes referem sempre sua inteligência, sua perspicácia nos diagnósticos, seu desprendimento e sua dedicação. De fato, ao longo de minha infância e de minha adolescência, nunca o vi faltar ao trabalho, nem deixar de atender emergências a qualquer hora do dia, da noite, da semana.Os gregos antigos costumavam dizer que, para saber se um homem foi feliz, é preciso esperar o fim. Então: meu pai foi um homem afortunado.

Teve uma mãe formidável, oito irmãos próximos quando foi necessário, uma esposa bela e mansa, cuja logística compensou sua falta de jeito com a vida prática, e cinco filhos.Foi mais recluso e calado do que sociável, teve, como todos, fragorosas derrotas, mas, principalmente, foi triste, de uma tristeza mais desesperada que melancólica.Sua inteligência serviu a outros, não a ele. Seus dilemas, suas ambivalências, suas dores sem remédio e seu silêncio duro e confuso criaram em torno dele um tufão de renúncias e sofrimentos perigoso.

Mas foi um pai acertado. Deu a sustentação, foi até o fim porto seguro e registrou, com certeza e força, cada um dos filhos, fazendo-os membros pertencentes a uma família.Reconheço-o no amor que sou capaz de sentir pelos meus próprios filhos; na força que tenho para enfrentar as dificuldades de minha própria vida; na habilidade que sempre arranjo para me sustentar e aos meus filhos; na minha resistência à futilidade e à superficialidade; na minha escolha clara do que sou, mesmo quando isso me traz prejuízo e dor.

A bem da verdade, o resultado final me traz mais ganho que perda: seu governo deixou-me uma base de valores preciosos que, junto com a mansidão de minha mãe, fazem de mim o que sou.Essa ordem triste e difícil me construiu e norteou minhas escolhas que, aliás, foram livres e puderam ser privadas. Meus segredos, ausências, silêncios nunca me foram cobrados. Até o final, pude dar a meu pai o que pude dar. Nem mais, nem menos. Como ele me ensinou – o que ele não me deu, ele não pôde me dar. Pronto. Assim, duro e mudo.

João Guimarães Rosa tem um conto bonito que sempre me ajudou a compreender o meu pai: a história de um homem que, a certa altura da vida, resolveu viver não nas margens tradicionais de um rio, mas dentro de uma canoa, “perto e longe de sua família dele”, numa terceira margem. A história é contada por seu filho, que não dá conta de entender aquilo e sofre anos a fio, sem de todo poder seguir sua própria vida, conectado que permanece àquela realidade incompreensível.Eu sou esse narrador de uma história tão parecida com a minha que me assusta: meu pai esteve sempre numa margem difícil de compreender – cercado de peixes, galos, peças de xadrez e outros objetos sem lógica entre si, viveu num ponto da geografia social com meridiano e sem paralelo.

O meridiano lhe deu certa habilidade à sustentação material, herança antiga que tornou a falta de paralelo sempre menos aflitiva, apesar de difícil.A topadas e quedas sem mão, fui aprendendo e aceitando essa geografia única e especial, meu pai, na sua canoa de tristeza, vivendo numa distância intransponível de mim e de si, minha vida correndo a seu largo...Lá... acolá... ele pôde estar ao meu lado e, devagar, fui aprendendo a crescer e a tirar de mim mesma o necessário, por meio de suas lições caladas.

Ao contrário dos personagens, no fim, ele não me chamou para mais me confundir. Foi passando devagar e totalmente para a sua terceira margem e pareceu não ter sentido meu último beijo nem ter ouvido meu pedido de força para o último passo.Seu repouso também foi meu: sua canoa agora é o rio.Um rio é uma vida limpa que nasce, a gente nem sabe onde... ele passa, às vezes se turva... tanta gente vive daquela água... a gente nem sabe avaliar... depois ele deságua no mar.Tem gente que não sabe ver o rio dentro do mar...

Mas há uma mágica nas correntes marinhas que alimenta o ciclo do tempo e que faz meu coração funcionar...A teimosia da onda que molha os pés dos meus filhos é parte da água incansável que adia, sem explicar. E que carrega consigo parte do rio perdido.

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Texto de FLÁVIA SUASSUNA, uma das excelentes professoras de Literatura que já tive em minha vida.

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