Por Raissa Ebrahim
A mudança está nas estatísticas.
Diferente de algumas décadas passadas, várias famílias brasileiras
resolveram viver sem empregada doméstica. Dados da última Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que o percentual
de trabalhadoras nos lares brasileiros caiu de 17,1%, em 2009, para
15,8%, em 2011.
Em números absolutos, significa que a
quantidade de empregadas passou de 6,6 milhões para 6,1 milhões.
A
tendência é que essa queda se acentue ainda mais nos próximos anos. Os
motivos? O surgimento de uma nova mentalidade, um novo cenário do
mercado de trabalho – com novas e melhores oportunidades – e o
encarecimento do serviço, devido, sobretudo, à aprovação da Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas, na semana passada, que
amplia os direitos da categoria.
Para quem não conta com uma empregada,
dividir é a maneira mais eficiente de manter a casa em ordem. Ir para a
ponta do lápis é essencial na hora da decisão. Igor Santos tem 27 anos, é
gerente de projetos de software, trabalha o dia todo e ainda faz
mestrado. É casado com Amanda Valente, 28, que é dentista e atende em
quatro consultórios (Boa Viagem, Espinheiro, Casa Amarela e Boa Vista).
Com um filho de quase quatro anos, Mateus, bastou fazer uma conta
simples para perceber que valia mais a pena matriculá-lo numa escola
integral do que pagar uma babá.
“A mensalidade do colégio nos dá direito
a três refeições diárias (lanche matinal, almoço e lanche da tarde),
além de um esporte duas vezes por semana. Se fôssemos pagar a escola e
uma babá, a conta sairia muito mais alta, principalmente com as últimas
mudanças. Além do mais, na instituição Mateus fica sob a supervisão de
adultos capacitados, tem aulas de inglês e informática, convive com
outras crianças e divide a atenção das ‘tias’. Um mês depois de entrar
no integral, já notávamos uma mudança incrível no desenvolvimento dele”,
explica.
“Acordamos durante a semana às 6h. Deixo
Amanda e Mateus de carro na escola. De lá, ela segue de ônibus para um
dos consultórios e eu vou para a empresa, na Cidade Universitária. No
fim do dia, voltamos todos juntos”, conta. A esposa mostra que em casa
as tarefas são equacionadas: “Geralmente os pratos, as compras e a
manutenção ficam com ele. Eu cuido da faxina e das roupas. Sempre
orientamos Mateus a guardar os brinquedos depois de usá-los, para nos
ajudar a manter a casa limpa e organizada por mais tempo”.
Lorena Maniçoba é enfermeira, separada,
tem 23 anos e um filho de quatro anos. Nunca teve empregada. E fez isso
por escolha. Prefere contar com a ajuda da família e dos amigos quando
não pode ficar com a criança. “Na verdade nunca vi necessidade de ter
uma babá, acho invasivo e, na minha opinião, não há ninguém melhor que
eu mesma para cuidar do meu filho”, argumenta.
EXTERIOR - A escassez
da mão de obra doméstica é recente no Brasil, mas, em locais mais
desenvolvidos, como Europa e Estados Unidos, a realidade já é diferente
há muito tempo. Por lá, pesa, além da questão cultural, o alto custo por
um serviço de qualidade. Quem tem uma empregada é considerado rico. Não
há dúvidas de que contexto é facilitado por creches acessíveis e de
alto nível. A qualidade de vida é outra. Por aqui, a prática de não ter
uma funcionária dentro de casa ainda é fortemente inibida pelo ritmo de
vida e pela condição financeira.
A promulgação da PEC das Domésticas não trará só mudanças trabalhistas. Ajudará também no avanço de uma questão que caminha a pessoas lentos: a divisão mais igualitária entre homens e mulheres dentro dos lares. A professora de psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do movimento feminista, Karla Galvão Adrião, chama atenção para um mascaramento da igualdade de gêneros nos últimos anos.
“Da década de 1980 para cá, presenciamos uma intensificação da saída da mulher para o espaço público para trabalhar. Sua posição dentro de casa, porém, passou a ser ocupada por uma outra mulher, de classe social mais baixa. A reconfiguração dos lugares, portanto, não aconteceu por completo”, analisa.
Karla questiona quanto vale o trabalho doméstico. “À atividade, não é dado o seu devido valor. Qualquer pessoa que a assuma, seja homem ou mulher, estará assumindo um trabalho desacreditado”, enfatiza. Para ilustrar, Karla compara o que se paga a uma diarista no Sul com o que se paga no Nordeste. “O preço aqui chega a ser metade do de lá”, atesta.
“No Nordeste, ainda temos uma herança muito forte da casa grande e da senzala. Hoje menos, mas ainda é costume trazer uma menina do interior e ‘criá-la’ para que ela cresça como empregada, num relação muitas vezes análoga à de servidão. Criam-se laços afetivos, que são bons por um lado, quando a relação é de respeito, mas também inibem a questão do direito trabalhista, fortalecendo a desigualdade”, argumenta. Ela levanta outra questão: “Por que chamar a doméstica de ‘quase da família’ se muitas vezes ela come uma comida diferente e dorme no quartinho de trás?”.
Para a professora da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE Liana Lewis não foi à toa que o trabalho doméstico não tinha, até então, uma lei trabalhista consolidada. Para ela, isso revela muito sobre a sociedade brasileira. “É a maior caracterização do nosso regime colonial e escravocrata. Não é o impacto financeiro a grande questão. Há uma herança escravocrata que a classe média não quer admitir: a de querer impedir que os que estão expropriados de seus direitos tenham mais dignidade”, afirma.
EXEMPLO - Antônio
Cabral é aposentado. Maria José trabalha na casa dele há 40 anos. Há
sete, ela sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Não chegou a se
aposentar, mas ficou sem condições de trabalhar. Mesmo assim continua
morando com seu Cabral e recebe dois salário mínimos. Já que tem
condições, ele abriu uma poupança para ela para complementar a renda de
Dona Maria quando ela se aposentar. “Faço isso para garantir o futuro
dela. Funcionará como um FGTS. Todo mês deposito um pouco. É uma forma
de agradecer a ajuda na criação dos meus filhos”.