O espelho acha feio quem não é Narciso?

Por Roberto Numeriano *

A luta política é essencialmente ideológica. Não quero dizer com essa premissa que tudo é ideologia, naqueles termos do que chamamos de "falsa consciência" sobre o real e suas expressões materiais traduzidas nos conflitos entre ideias e nas ideias em si. Quero dizer que esses conflitos, na sua expressão política, traduzem sempre uma visão de mundo ideologicamente conformada. Por isso é sempre tão atual e sábio aquele alerta de Brecht sobre o analfabeto político. O grande autor de teatro e comunista alemão trata sobretudo da alienação política em termos ideológicos.

Por que estou a tratar, aqui, desse tema aparentemente natural apenas ao mundo acadêmico da ciência e filosofia política? Já é ideologia (e conservadora) imaginar que a discussão sobre ideologia se restringe a dados espaços e/ou tempos. Todos somos ideólogos, ainda que não saibamos dessa condição ontológica, na mesma proporção que somos também um "animal político" aristoteliano. Professamos ideologias religiosas (você é católico? umbandista? kardecista? evangélico?). Professamos ideologias sociais na forma de identificação com certas bandeiras (você é ativista de fóruns que congregam grupos de gênero? de direitos humanos? de animais maltratados?) Professamos ideologias que são filosofias (ateísmo, agnosticismo etc).

Como militante do PCB e cientista político tenho a rara sorte de vivenciar as dinâmicas da luta política e recolher e formular, ao mesmo tempo, ideias que julgo importantes discutir para além do ambiente da ação político-partidária. Por isso, faço neste artigo uma reflexão sobre os movimentos sociais que ganharam dimensão e importância política a partir da década de 90, no contexto de sua relação com o ativismo político dos partidos de esquerda. Considero isso necessário tática e estrategicamente para a luta político-eleitoral e ideológica que, ainda que não percebamos, determina muitas escolhas nas disputas.

E um dos fatos que as campanhas políticas afirmam, para além da disputa em si pelo voto, é a alienação dos movimentos sociais diante dos partidos, os atores fundamentais nos quais desaguam, num formato mais institucionalizado, os conflitos e contradições entre e nas diversas classes e seus interesses. Essa alienação é em essência ideológica. O seu pressuposto é que os movimentos devem guardar distância dos partidos em função do perigo que este representariam como instituições que buscam o poder, à esquerda e direita do espectro ideológico. Tal crítica vê os partidos numa dimensão puramente instrumental, como operadores de demandas sociais numa perspectiva reducionista (o famoso fim em si mesmo), sem incorporar uma razão centrada numa concepção por assim dizer holística como mediadores de interesses.

Essa crítica conservadora tem uma "razão de ser" política, mas não ideológica. De fato, alguns partidos instrumentalizaram, em época política já remota, sindicatos, a exemplo do PCB, que ainda na clandestinidade dos anos 70 fez sua autocrítica. De fato, temos hoje alguns partidos de esquerda, direita e centro que agem de modo oportunista e instrumental junto às entidades, sobretudo sindicais, com o discurso socialista e/ou assistencialista na ponta da língua. Esse arrivismo político provocou, já a partir dos anos 90, quando a redemocratização permitiu a abertura e a ascensão de milhares de entidades sociais, a resistência dos militantes sociais aos partidos e suas táticas políticas. Ao mesmo tempo, e aqui temos o nó da questão, essa resistência concebeu ideologicamente (sem perceber) a crítica aos partidos, tratando-os, a priori, como potenciais (ou mesmo intencionais) manipuladores das entidades por meio de sua militância.

Trata-se de uma prevenção que revela, em seu absolutismo puritano, um preconceito ideológico perigosamente inspirado numa visão de mundo que não deixa de ser classista, ainda que revestido ou travestido de uma pretensa universalidade isenta e neutra de ideologias, políticas ou não. Qual é o resultado ideológico e prático dessa crítica conservadora e genérica aos partidos, em certo sentido já deslocada no tempo?

Em primeiro lugar, a auto-suficiência que muitos movimentos incorporam no seu ativismo. Agem como se bastassem a si próprios, como se encarnassem, na sua diversidade de visões e interesses de ativistas, uma compreensão superior e mais universal dos eventos sociais, políticos, econômicos, culturais etc. Ou seja, muitos praticam aquilo que acusam no oportunismo dos partidos, quando estes se supõem vanguarda e estuário de verdades. Esse comportamento isolacionista é o primeiro passo para instituir uma visão alienada do real, dado que os ativistas discursam a partir de cima, autocraticamente. Muitas dessas entidades gostam da palavra diálogo, mas desde que o interlocutor concorde, prima facie, com o que está sendo discutido internamente ao grupo. Dialogam entre si, mas para fora de suas entidades discursam.

Onde estaria a classe inspirando esse autoritarismo, se, aparentemente, tais entidades de movimentos são constituídas por gente de diversas classes sociais, ainda que predominem os de origem pequeno-burguesa? Essa classe ou grupo social seria de um novo tipo, afeito ao ativismo que pretende ajustar o mundo de misérias e contradições a uma pretensa racionalidade legal e moral nos marcos do capitalismo. Vamos dar as mãos e curar as feridas da cidade num só canto (desde que esse canto não derrube as muralhas da Jericó capitalista). São quase os antigos socialistas fabianos. Não por acaso lemos nos seus projetos um viés judicialista e moralista que se supõe universal no seu holismo. Instituem uma ideologia que se pretende asséptica de eventuais contaminações político-partidárias. Essa ideologia conservadora quer distância dos partidos e de seus militantes, mas ao mesmo gosta do apoio partidário às suas demandas.

Em segundo lugar, temos como elemento central dessa crítica conservadora aos partidos o que chamo de culto da ilusão das formas, encarnado pelos movimentos no instante exato em que formulam seus discursos e delineiam suas diretrizes de ação. O culto da ilusão das formas significa instituir uma prática política auto-referente, que desenha os cenários de intervenção sem problematizá-lo ideologicamente. São grandes cenários da forma do agir público, mas concretamente ocos, emasculados em termos ideológicos. Daí o discurso do movimento ser avesso àquilo que é a questão fundamental numa sociedade de classes: quem tem a hegemonia e exerce o poder real? Não é por acaso que muitas entidades repudiam os partidos de um modo geral, pois nenhum deles é alienado dessa condição ontológica de sua existência. Em outras palavras, o fato de um partido pretender o poder parece ser um pecado original, um anátema político. Ocorre que nenhuma dessas entidades existe sem esse mesmo fim, que não precisa estar inscrito em um estatuto para ser reconhecido como tal. As entidades querem conquistar o que podemos chamar de poder social, que nada mais é do que uma forma particular de poder político não instituído.

No entanto, o culto da ilusão das formas inscreve esse objetivo das entidades de modo muito mais ideológico do que podemos supor. De fato, ainda que se suponham acima das classes, considerem-se holísticas, universais ou qualquer outra palavra charmosa que o valha, tais entidades pretendem, essencialmente, instituir uma identidade supra-classista que, ao fim e ao cabo, é a mais perniciosa forma classista e conservadora de ativismo, pois se isolam e ao mesmo tempo pretendem mediar os problemas sociais, políticos, econômicos etc a partir dos seus focos absolutos e auto-referentes, segmentando uma visão de mundo restrita, em termos político-ideológicos. (Assemelham-se, a rigor, com o pensamento conservador e até reacionário no mundo acadêmico de mestres e doutores que habitam torres de marfim). Muitas dessas entidades olham as desgraças do mundo a partir de suas ilhas fabianas, e em suas ilhas recusam estrangeiros (ideias ou programas de partido) que possam contaminar a boa ordem. Esse narcisismo político quer a todos nós espelhos para refletir sua auto-suficiência. Porém, ideologicamente, essa visão está alienada do real, pois a vida viva das ruas não reflete Narcisos, mas sim uma brutal e vil degradação de seres humanos e de suas cidades. E essa condição inscreve o desafio da conquista do poder pelos partidos e entidades do movimento como algo concreto e perene. Ninguém pode se emancipar dessa condição de degradado do e no coletivo se cultiva a ilusão de se emancipar em grupos abertos apenas na forma de agir, mas fechados ao diálogo político e ideológico junto aos partidos. O espelho, faz tempo, cansou de Narcisos.

Artigo dedicado ao povo e aos lutadores sociais da Caranguejo-Uça, da Ilha de Deus, que sabem da importância dos partidos e não se fecham ao diálogo franco e democrático com seus militantes.

* Roberto Numeriano é candidato à prefeitura do Recife pela Frente de Esquerda PCB - PSOL.

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