Das migalhas à revolução

Por Érico Andrade*

Marchas por um estado laico, pelo direito de ser “vadia”, por vias urbanas compartilhadas, pelo fim da corrupção. Vou defender neste artigo que todas essas manifestações portam dois aspectos essências. Por um lado, a falência dos projetos de uniformização da esfera pública por meio do recurso exclusivo à atividade partidária. Por outro, uma nova forma de fazer política que se pauta pulverização da luta pelo bem público. Pretendo explicar a correlação entre esses dois aspectos por meio da defesa da tese de que eles espelham uma nova guinada na compreensão da esfera pública (lugar em que ocorre o embate político pelo bem público e onde as grandes ideias são geradas). O ponto de inflexão que produz essa guinada está situado no conceito de sociedade civil organizada.

A procura pela hegemonia política na esfera pública é marcada por uma luta anterior, a saber; pela hegemonia política na esfera interna dos partidos políticos. Atores políticos são calados, bandeiras são recolhidas e ideais, muitas vezes pálidos, são negociados. Tudo é legítimo – e muitas vezes legal – no que diz respeito à apropriação da esfera pública por parte das facções internas dos partidos. Para além dos interesses corporativos e intestinais que governam essa atitude política, está a tese de que a esfera pública se reduz à burocracia do estado. Ou seja, os partidos agem segundo a lógica de que o domínio da burocracia estatal lhes habilita a determinar a melhor maneira de gerir o bem público. Por isso, a luta política pelo domínio do partido migra para a burocracia na forma de distribuição de cargos que garantem a hegemonia política de determinados grupos no que concerne à condução das cidades.

Contudo, a representatividade dos partidos se esvai na proporção em que eles não conseguem equacionar os interesses privados na forma de um bem público. Os partidos são diluídos num turbilhão de interesses que movem a própria estrutura da política por meio do financiamento das campanhas. O volume de recursos necessário para a conquista de uma campanha eleitoral torna os partidos subordinados aos grandes grupos econômicos ou religiosos (também com grande capital). Por conseguinte, a representação realizada pelos partidos da sociedade civil é completamente minguada. O que está em jogo na política partidária são os interesses corporativos que no máximo contemplam indiretamente o interesse da sociedade civil.

Esse diagnóstico está impresso no pouco apreço da sociedade pela política partidária, materializado por uma desconfiança generalizada com relação aos políticos, mas não deve ser confundido com o desprezo pela atividade política. Nessa perspectiva, há uma tendência do debate político de deixar os púlpitos da burocracia estatal para assumir uma dimensão direta em que a sociedade civil organizada dita a pauta da esfera pública por meio da introdução de demandas que atingem diferentes níveis, não necessariamente contraditórios, do que é o bem público.

A pulverização da luta pelo bem público perde em burocracia na medida em que ganha em liberdade de debate, de expressão. Por não estar subordinada a nenhum interesse monolítico (ligado apenas a certos grupos) a sociedade civil se organiza de um modo que torna possível expor questões e projetos que incidem sobre a estrutura da cidade no seu aspecto coletivo. A esfera pública se torna homogênea na sua heterogeneidade, ou seja, as diversas campanhas por direitos civis, voltadas para a estrutura da cidade (pessoal e física), se harmonizam tacitamente na forma de demandas específicas que paradoxalmente ou invisivelmente convergem quanto à defesa de uma esfera pública que não seja restrita ao interesse privado ou corporativo.

O ponto é que a política é desdobrada em diferentes arranjos que tentam se apropriar do bem público por meio da defesa de sua coletivização, isto é, por meio da ideia de que nenhum interesse privado pode se sobrepor aos demais interesses. Ou seja, por não defender um interesse relativo à apropriação imediata do espaço público, seja por códigos religiosos, seja por interesses ligados exclusivamente ao capital, as marchas promovidas nas grandes cidades tornam a sociedade civil organizada protagonista na esfera pública no que concerne à defesa da coletivização do espaço público.

É no vácuo da política partidária – inapta quanto ao poder de representar a luta pelo bem público – que a sociedade civil reconfigura a esfera pública e prioriza o interesse coletivo. As diversas marchas que tomam as cidades se transformam num projeto político comum que tem na sua base uma importante gama de interesses diversos, incompatíveis com uma uniformização partidária, mas convergentes quanto à defesa da coletividade. Das lutas esfaceladas em migalhas surge uma nova forma de revolução que compreende que as grandes mudanças não implicam uniformização da esfera pública, mas sim a promoção e a aceitação da sua diversidade.

* Érico Andrade é Doutor em Filosofia pela Sorbonne e Professor Filosofia / UFPE

Postar um comentário

Comente esta matéria

Postagem Anterior Próxima Postagem