Morre Dona Maria, torcedora símbolo do Sport, aos 98 anos

Mulher negra, da Zona da Mata Norte de Pernambuco... Sobrevivente. Adjetivos que ajudam a descrever Dona Maria José, mas não em sua completude. O ser rubro-negra, sim.

Aos 98 anos de idade, a torcedora símbolo do Sport, que enfrentava complicações de um câncer, faleceu neste domingo, às 6h40. Passa o bastão para outras mulheres perpetuarem o seu legado, intangível.

Morre a personagem, escondida, ofuscada pelo próprio brilho, e fica o exemplo. Estampado nos corredores da Ilha do Retiro e motivo de homenagens variadas pelos rubro-negros.


"Símbolo de orgulho, resistência e força".

Dona Maria José estava hospitalizada desde julho no Recife. O quadro clínico acabou piorando, quando começou a receber cuidados paliativos.

A última vez que havia ido à Ilha do Retiro ocorreu em janeiro. Dona Maria reencontrou o estádio depois de dois anos desde o início da pandemia de Covid-19. Ali, revelou ansiedade para voltar a ter seus encontros constantes com o clube, e disse: "Deixar o Sport? Só quando morrer."

A casa é (e sempre será) sua, Dona Maria José.

BIOGRAFIA

"Todo mundo que me vê assim hoje, sorrindo, alegre… Não sabe o quanto eu sofri. Mas hoje estou aqui. Não desisti nunca”. O discurso forte, por vezes, contrasta com o olhar distante. Pensativo. Mas dona Maria José de Oliveira sabe que construiu a casca de quem é inabalável. Ao tempo e às dificuldades da vida - contra quem, desde cedo, batalhou incansavelmente para sobreviver. Uma história, no entanto, que ninguém ouviu. Ofuscada, durante muito tempo, pelo próprio brilho. Por uma personagem. Porque Dona Maria José é reverenciada em Pernambuco não por sua trajetória de vida, mas por ser uma torcedora ícone do Sport. 

Nascida no município de Nazaré da Mata, Zona da Mata Norte de Pernambuco, a torcedora do Sport não gozou do luxo de viver cada uma das etapas naturais da vida. De criança a mulher adulta. Vinda de família pobre e filha única de José Joaquim, lavrador de cana-de-açúcar, Dona Maria teve que tomar as rédeas da própria vida desde muito cedo. Abandonada pela mãe após seu nascimento, Dona Maria passou a  morar com o pai ao lado da madrasta. A ausência da figura materna, nunca conhecida por Dona Maria, também não foi suprida pela madrasta.

Sem alternativa, Dona Maria foi embora. Mas qual caminho seguir? A resposta veio rápido: Carpina. Todos os domingos à tarde, trens da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) faziam o trajeto que ligava Recife até o município da Mata Norte de Pernambuco. Caminho feito pelo próprio pai e Dona Maria, quando, aos finais de semana, iam fazer feira. E foi a partir de uma carona na estação Ferroviária de Carpina, que Dona Maria tentou recomeçar a vida sozinha. 

O RECOMEÇO

Recém-chegada em Carpina, Dona Maria foi adotada por Dona Chana, uma senhora que vendia almoços no centro do município. As duas já se conheciam por conta das idas e vindas do seu pai, José Joaquim, aos domingos, para fazer feira na cidade. Foi a vendedora de quentinhas a primeira a ser procurada pela torcedora do Sport, que pedia um teto para morar. A comerciante aceitou o pedido. O ‘sim’, no entanto, marcou o início de um pesadelo que durou 27 anos. Morando com a comerciante, Dona Maria assumiu outro papel: o de empregada doméstica.

“Não tive direito a nada, só a trabalhar. Como eu era preta e ela tinha uma filha, Nininha, bem alva, de cabelo bonito, ela cuidava mais da filha e não cuidava de mim. Eu só existia para trabalhar e a filha dela não fazia nada. Durante os 20 anos que passei lá, desde que cheguei com sete anos de idade, só fiz lavar prato, casa. Eu saía carregando comida de Carpina até Tracunhaém para levar almoço para o genro de dona Chana. Todo dia, no sol quente”, relembrava.


Nesse instante, Dona Maria parava a conversa. “Mas, minha filha, foi lá que eu comecei a perceber que precisava tomar outro rumo”, prossegue. Ela lembrava que recebeu uma proposta tentadora: construir uma casa e dividí-la uma com a filha de Dona Chana. “E quem não quer ter uma casa? Eu fiquei doidinha para ter uma casa. Eu me danei a bater tijolo, puxar água naquelas cacimbas. Eu batia barro também para botar nas grades. Fiz tudo sozinha. Quando a casa estava pronta, perguntei: ela é minha e de Nininha, não é? Dona Chana disse: não, é só de Nininha. Aquilo ali me deu uma revolta tão grande no mundo, tão grande... Foi por isso que saí de Carpina”, detalhou, à época.

COMEÇAR DE NOVO

Com 27 anos, Dona Maria novamente procurava um lugar para reconstruir a vida. Sem perceber, a grande paixão da vida começava a se desenhar. “Eu sempre gostei de futebol, de esportes. E eu ouvia minhas amigas de Carpina falando que no Recife tinha um time de futebol rico, o Sport. Aí eu fiquei empolgada porque queria conhecer esse time de qualquer jeito, não sei o porquê. Vim para Recifetambém por conta disso”, explicou.

Como uma retirante, Dona Maria chegou à capital pernambucana em 1959 levando consigo apenas um “mulambinho” de roupa nas costas. À procura de uma nova chance. Mas não tardou para a solução chegar.  "Um senhor, com quem eu estava conversando na rua e pedindo uma casa para morar, conhecia seu Sarubbi, um italiano muito famoso aqui no Recife, dono de uma Alfaiataria no Pátio do Santa Cruz. Ele foi falar com seu Sarubbi e disse: ‘olhe, seu Sarubbi, tem uma ‘moreninha’ de Carpina que não tem para onde ir. Você quer ficar com ela até ela arrumar um canto? Aí ele disse: quero. Aí pronto, fiquei lá”, lembrou. 

A casa do italiano foi o lar de Dona Maria por quase 40 anos, mesmo quando conheceu e esteve casada por 30 anos com João Assis de Oliveira, seu marido. Na casa dos Sarubbi, Dona Maria trabalhou como babá e criou os três filhos do casal. “Eu vi nascer, tirei do carro, botei no colo... Criei eles como meus filhos. Todo mundo gostava muito de mim e me tratava bem”, revelou. Aos domingos, a família tinha um compromisso inadiável: ir à praia de Pau Amarelo. “Parecia que era uma praga… Eles iam para Pau Amarelo, e aí batia com o dia do jogo do Sport. Eu ia para cuidar dos meninos, mas chorava demais. Eu chegava atrasada para o jogo, mas eu vinha”, confessou.

A NOVA FAMÍLIA

Dona Maria nunca saiu da vida dos italianos. E vice-versa. Seu Sarubbi e a esposa Maíse faleceram, restando da família apenas os filhos Silvana e Paulo. São eles que, em retribuição ao carinho dado por Dona Maria na infância, cuidaram dela até hoje. Por ironia do destino, torcem pelo Náutico. Mas Dona Maria não se atinha à rivalidade, e brincava: “É o jeito. Ninguém é perfeito". Apesar da idade avançada, Dona Maria não parou no tempo. Continuou com personalidade forte, independente. Há três anos, escolheu viver distante dos filhos de criação e morousozinha em um condomínio de propriedade da família Sarubbi, em Afogados. “Todo dia eles (Silvana e Paulo) ligam, me levam para médico, para passear. Cuidam de mim”, explicou. 

E é dentro do seu ‘cantinho’ que Dona Maria fez o que quis. O cronograma estava na ponta da língua. Todos os dias, levantava da cama às seis da manhã, tomava café, varria a casa, cozinhava e lavava os pratos. E ainda tinha disposição de sobra para fazer uma das coisas que mais gostava: pular corda. “Eu pulo corda aqui dentro de casa porque lá fora, se me virem pulando corda, vão achar que a velha está doida”, dizia.

Outra paixão da torcedora rubro-negra era ler revista de horóscopo e a Bíblia, sempre aberta na mesa de cabeceira perto da cama.  Mesmo analfabeta, tendo “estudado umas letras” no Mobral - Movimento Brasileiro de Alfabetização instituído em 1967 durante a Ditadura Militar -  já com mais de 40 anos, Dona Maria dizia que “sapecava” algumas coisas, apesar da dificuldade. “Sei o “o” porque tem no fundo da xícara. Ainda leio alguma coisinha na minha Bíblia, que fica na minha mesa aberta o tempo todo, e minha revista de horóscopo, que eu amo. Sou uma aquariana verdadeira, porque a gente é forte e nunca desiste”, relatou. 

É assim que Dona Maria caminhou, seguiu a vida, inclusive compartilhando o segredo que, para ela, era a fórmula da longevidade: nunca desejar mal à ninguém, nem ao próprio inimigo. “Só tome conta da sua vida”, aconselhava. Para quem teve uma vida de batalhas - vencidas -, Dona Maria também não tinha medo da morte.

"Quando eu morrer quero sair do Sport, ir em um caminhão do carro dos Bombeiros, passar pelo Palácio do Governo até chegar no cemitério. E quero ser enterrada na frente do cemitério, não é atrás não. Porque quando o negro morre, enterram lá no fundo. E eu tenho muito orgulho da minha cor. Eu vou quando Deus quiser, mas sei que ele não quer que eu vá agora, disso eu tenho certeza", garante. E com a experiência inerente aos seus 98 anos, Dona Maria escolheu aproveitar o presente. "O momento mais marcante da minha vida é estar viva." 

SÓCIA BENEMÉRITA

Em 2019, ela recebeu uma homenagem mais do que justa. O Conselho Deliberativo do Sport concedeu à ela o título de Sócia Benemérita, maior comenda do clube.


DESPEDIDA

O Sport decretou luto de três dias em homenagem à torcedora e anunciou o velório de Dona Maria para a tarde deste domingo, a partir das 16h, na sede, da Ilha do Retiro. 


A celebração será nesta segunda-feira (11), às 8h, na sede do Clube.

O enterro, por sua vez, acontecerá às 11h , no cemitério de Santo Amaro.

Atualizada às 19h
Com informações da Globo.com, Diario de Pernambuco e TV Sport

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