Santa Maria da dor
Quinze minutos valeram a vida. A
estudante Priscila Vidor, 20 anos, que cursa relações públicas na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), estava na formatura de uma
turma de tecnologia em alimentos no mesmo quarteirão onde fica a boate
Kiss. Priscila, que conversou na tarde de domingo (27) via Facebook, deixou a festa às 2h45 e se
dirigiu à casa noturna. Mal sabia que o local, por volta das 2h30, havia
sido palco da maior tragédia da história gaúcha e uma das maiores do
Brasil.
Ao chegar, a jovem nem pôde se refazer
do susto. O cenário de guerra não permitia reflexões. Entre a
incredulidade e a dor, lembrou que um colega, Matheus Rafael Raschen,
tinha saído mais cedo da formatura para terminar a noite na Kiss. A
busca por informações em meio ao vaivém de feridos, sobreviventes,
policiais, bombeiros e equipes do Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência (Samu) era quase impossível.
De repente, dois amigos de Raschen
conseguiram sair da boate. Ele não. A partir das 3h, começaram a quebrar
as paredes da Kiss. Um exercício de desespero na luta por salvar vidas.
Foi quase uma hora depois que Priscila teve a confirmação de que
Raschen fora socorrido ferido e levado para uma Unidade de Pronto
Atendimento (UPA). No começo da tarde, o rapaz foi transferido para
Porto Alegre e seu estado de saúde é grave.
A soma de irresponsabilidades amplifica a
dor. “Um integrante da banda acendeu um sinalizador, a faísca pegou no
teto, que era isolado com isopor, e o fogo se espalhou muito rápido. Por
algum tempo, não sei determinar quanto, os seguranças fecharam as
portas. Um deles ainda chegou a dizer que as chamas estavam controladas.
Uma menina passou por debaixo das pernas dele para poder fugir”, conta
Priscila. A desorientação geral fez muita gente confundir as portas dos
banheiros com saídas alternativas. Outros tantos acabaram pisoteados.
O sol chegou e trouxe mais notícias
ruins. Priscila soube que um amigo de turma, identificado como Emerson
Cardozo, estava entre os mortos, além de uma colega do curso de
jornalismo. O ex-namorado de uma amiga também morreu. Difícil encontrar,
em Santa Maria, alguém que não conheça ao menos uma das vítimas. “A
situação está muito triste. O que tranquiliza um pouco é saber que as
forças estão direcionadas e que todos estão se organizando. A cidade
está toda mobilizada”, relata ela.
SOLIDARIEDADE - A
universitária Jenifer Godoy, 20, é exemplo desta arregimentação
voluntária que tenta curar uma ferida que nem tão cedo vai cicatrizar. A
estudante foi domingo pela manhã ao Hemocentro de Santa Maria doar
sangue para ajudar a multidão de feridos. Portadora do tipo sanguíneo O
negativo, mais raro, ela é mais uma no exército de anônimos que, desde a
última madrugada, tenta amenizar a tristeza que se abateu sobre a
cidade, o Estado, o Brasil. “Quando cheguei ao Hemocentro, parecia o fim
do mundo. Estou disposta a fazer qualquer coisa para ajudar”, conta
ela, cujo namorado tem família no Recife.
Jenifer também visitaria o Centro
Desportivo Municipal (CDM), para onde os corpos de vítimas foram
encaminhados. Há amigos dela desaparecidos. Jenifer soube que metade de
uma turma de agronomia morreu.
Pelo Facebook, a comunidade
universitária de Santa Maria, que abriga mais de 10 instituições de
ensino superior, tenta fazer sua parte. Eles pedem doações de água
mineral, álcool em gel, papel higiênico, barras de cereal e luvas
descartáveis. Clamam ainda às farmácias da região por medicamentos como
captopril, clonazepam, diazepam e paracetamol. Prefeitos de cidades
vizinhas disponibilizaram alojamentos para familiares de vítimas e
feridos.
No sétimo período de arquitetura e
urbanismo no Centro Universitário Franciscano (Unifra), Jenifer também
está indignada. Não admite o fato de a boate Kiss não cumprir a NBR
9077, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), sobre saídas
de emergência em edifícios. “A boate também estava com a licença vencida
e alguns extintores não estavam funcionando. É um absurdo saber disso”,
desabafou.
Nas redes sociais, os universitários da
cidade se mobilizaram e organizam, na noite desta segunda-feira (28), a
Caminhada da Paz. No Facebook, onde o evento foi criado, 1.702 pessoas
já haviam confirmado presença. A ideia é que todos vão vestidos de
branco e segurando uma vela, com saída prevista da Praça Saldanha
Marinho até o CDM, para o velório coletivo.
Do NE10
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