À musa da festa, Iemanjá

Por Miguel Rios
Iemanjá é ninguém para o bêbado a fim de dançar, é deusa poderosa para alguém empurrando um barquinho no mar, mãe suave para outro carregando lírios

Iemanjá é ninguém para o bêbado a fim de dançar,
é deusa poderosa para alguém empurrando um barquinho no mar,
mãe suave para outro carregando lírios

Acredite se quiser: nos milhares de quilômetros de costa brasileira o réveillon tem anfitriã. Iemanjá. Nem precisa apresentar, todo mundo a conhece, até os que nela não acreditam, os que com ela implicam, a combatem, mas ela persiste, exige se manter a maior estrela marinha, a que recepciona, cumprimenta, que agradece e é agradada na fronteira entre 31 de dezembro e 1º de janeiro.

Os que acreditam e os que querem acreditar têm tarefa mansa. Não requer esforço grande fazer uma fé.

Complicado, estressante mesmo, é chegar até ela, na beira-mar. Trânsito engarrafado, blitze antiálcool, sem local para estacionar, ônibus lotado, nenhum sinal de táxi, tumulto de multidão, carregamento de cadeiras, mesas de plástico e isopor, esquecimento de algo importante em casa.

Se deu tudo certo ou mais ou menos, se já se está na praia, se os atropelos passaram, basta esperar a contagem regressiva e mentalizar. Acreditar é tarefa mansa.

Iemanjá não cobra exatidão demasiada. Pode-se imaginá-la negra, branca, índia, oriental, incolor, brilhante, raio de luz, energia aquática. Etérea e efêmera para uns. Concreta, até em carne e osso para outros, imagem cândida e de gesso de Nossa Senhora.

Distante, santa, olhando tudo de longe, lá do fundo do oceano, intocável. Próxima, mãezona, acarinhando, tomando conta, ditando regras, solícita para ser incorporada. Protetora, autoritária e severa. Cheia de afagos a dar. Adora bajulação, odeia ser contrariada.

Durona ou chorosa? As duas coisas. Mãe. Já resume tudo.

Pode-se imaginá-la como for. Em formas diversas assim como diversos são seus seguidores. Dos que bebem Sidra Cereser, dos que degustam Veuve Clicquot, de quem traja roupa de linho branco, de quem se vira com malha de tabuleiro.

Alguns disfarçam a crença, envergonhados e temerosos, habitantes de um Brasil multicultural e polipreconceituoso. Amam sem coragem. Outros, desafiadores e seguros, a exaltam em cânticos e vestes para ostentar a falta de dúvida.

Adore-se como quiser, acredite-se como quiser. Livre escolha. Com direito a acolher e rejeitar. Discorde-se também, a hipocrisia é indigesta. Mas respeite-se. Defenda-se, inclusive, a não restrição religiosa.

Lembre-se que os primeiros cristãos foram para a boca dos leões pela cruel intolerância, que milhares, protestantes, católicos e wiccanos, arderam em fogueiras pela cruel intolerância, que outros milhares, judeus e ciganos, pereceram em campos de concentração pela cruel intolerância.

Crer diferente, de modo particular, não crer em nada ou crer pouco não implica em má índole, em alma perdida. Implica em democracia.

Implica em contradições humanas. Os próprios devotos de Iemanjá nunca chegaram a um acordo de como ela é. Meio índia, meio branca, de longos cabelos negros, vestido de seda, caminhando sobre a água, soltando pérolas das mãos, ou negra, com laços e saia rodada de orixá, dançando com um leque prateado. Moldada aos gostos pessoais, com formas e traços adaptados às conveniências.

Figura que pode pender mais para uma modelo tipo capa da Vogue ou para uma matriarca rechonchuda tipo, digamos, “afroitaliana”.

Com cauda de peixe à moda imposta das sereias europeias ou pernas torneadas estilo Beyoncé. Vaidosa. Altiva. Sofisticada. E popular. Que aceita bijuterias, pentes plásticos de fiteiro, e Seiva de Alfazema.

Jorge Amado, não apenas nascido e criado, mas praticante convicto da Bahia, a descreveu “loira e tem cabelos compridos e anda nua debaixo das ondas, vestida somente com os cabelos que a gente vê quando a lua passa sobre o mar”. Visão dele.

Pierre Verger, parisiense de nascença e criação, cidadão do mundo por escolha, sacerdote iorubá autodidata, a tinha como “matrona de seios volumosos, símbolo da maternidade fecunda e nutritiva”. Visão dele.

Como queiram. Iemanjá é ninguém para o bêbado afim de dançar, é deusa poderosa para alguém empurrando um barquinho no mar, mãe suave para outro carregando lírios, só uma diva da virada para um turma aloprada e baladeira. Digna de adoração por uma vida inteira ou de fé passageira por breves sete ondas.

Presenteada por um filho de santo com obrigação semelhante a de soldado no 7 de Setembro, presenteada por um católico com espontaneidade e ansiedade de retorno como quem avança ao primeiro beijo.

Há quem jogue apenas uma flor por despretensão ou total esperança. Há quem se diga que vai atirar um cheque em branco para ela comprar o que desejar.

Como queiram. Os minutos seguintes à 0 hora servem para chamar paz, amor, dinheiro, saúde, bom humor, um mundo melhor, na água que limpa e renova, mesmo que no primeiro dia útil de janeiro comecem a vencer as contas, venha a volta ao trabalho, a vida normal, o arrependimento de ter comprado aquela calça de R$ 289, a sensação de que nada será tão diferente. Mais um ano, revolto e de calmarias, de altos e baixos. Tal qual o mar.

*As colunas assinadas não refletem, necessariamente, a opinião do Blog

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