ALEGRIA POR ESTAR VIVO


Quando as palavras escapam, os olhos falam. A caminho do sonho, os de Marciano arregalam, apertam, se espremem, arregalam de novo. Não deixam passar nada. O Rio Capibaribe, as pontes, os carros no engarrafamento, os carros na concessionária. “


Vou comprar um daqueles. O maior”, diz, apontando para um modelo importado, com placa de vende-se. O menino de 16 anos que enganou as estatísticas e fez milagre abre um sorriso do tamanho do mundo ao ver o mar. É a primeira vez. Mas, diante das quatro linhas, tudo fica menor. Marciano está na Ilha do Retiro. No gramado do time que aprendeu a torcer. “Quero ver Fumagalli”, diz, sobre o ídolo de quem aprendeu a gostar. Até tentar pegar um morcego e ser marcado por ele, Marciano torcia pelo vermelho e preto, mas o do Flamengo. Lá em Floresta, no Sertão pernambucano, só passava na televisão o time do Rio de Janeiro. Agora, é rubro-negro do Recife.

E, nesta quinta-feira (10), no primeiro passeio que fez depois de vencer a raiva, era Sport desde criancinha.

Foi a primeira vez que saiu do hospital, sem ser em uma ambulância. A primeira vez desde que chegou ao Recife, no dia 10 de outubro do ano passado, desenganado por uma doença que, até ele existir, matou no País 100% de suas vítimas. Agora, quando alguém falar de raiva humana, vai ter que contar a história de Marciano Menezes da Silva. De como ele sobreviveu a 116 dias na Unidade de Tratamento Intensivo do Hospital Oswaldo Cruz, área central da capital. No mundo, só existe outro caso igual ao dele.


O garoto que desafiou os livros de medicina reaprendeu a sentar, a comer, a falar. Voltou à vida, sem se perder do mundo em volta. Marciano entende tudo. Escapou sem nenhuma sequela mental. E, ontem, quando a cadeira de rodas do hospital entrou no gramado do Sport, sua expressão de felicidade denunciava exatamente o tamanho da conquista de ter chegado até ali.“O campo é muito grande. Muito bonito”, repetia, vasculhando as arquibancadas, o gramado e tudo mais que a vista podia alcançar. Conhecer o Sport e o ídolo Fumagalli foi um presente que a equipe médica do Oswaldo Cruz quis dar ao garoto antes de ele voltar para casa, em Floresta.


Mas a surpresa foi ainda maior. Quando viu, Marciano estava cercado por todos os jogadores rubro-negros, um time inteiro aprendendo com o menino que venceu a raiva o exemplo de superação. Tirou fotos, ganhou abraços e saiu de lá com um tesouro nas mãos: a camisa oficial autografada por Fumagalli, Magrão, César, a seleção quase toda. “Eu adorei, adorei”, desmanchava-se, em sorrisos, quando questionado sobre o que achou da visita. Não era o único marcado pelo dia histórico.


Além dos pais, um casal humilde de lavradores, três dos médicos que cuidaram de Marciano acompanharam o garoto no passeio. Sorriam a cada gargalhada dada pelo paciente que passaram a cuidar como um filho. “Ele nos ensinou a acreditar. A não desistir. Venceu uma doença considerada mortal dentro de um hospital público, superando todos os tipos de dificuldade”, elogia o médico Gustavo Trindade, chefe da equipe que, após tantos meses juntos, virou a segunda família do adolescente.


O médico fez questão de apresentar a Marciano uma paisagem que, muitos sertanejos iguais a ele, nunca viram na vida: o mar. Na praia de Boa Viagem, Zona Sul, o garoto fez algo simples, mas que meses atrás, parecia improvável: tomou água de coco no canudo e comeu um pacote de batatinhas fritas. Tudo sozinho, sem ajuda de ninguém. Na volta para o hospital, ele viu, pela janela, o prédio da AACD, instituição que presta assistência a crianças deficientes. É lá que Marciano vai escrever a segunda parte da sua história. Na próxima semana, ele receberá alta do hospital e ficará vindo ao Recife apenas para as sessões de fisioterapia. O objetivo é melhorar a fala e vencer o último dos desafios: voltar a andar. A missão não parece impossível para o garoto. Pouco antes, ele havia deixado o campo do Sport, dizendo que queria voltar. Dessa vez para assistir a um jogo da arquibancada. E caminhando com as próprias pernas.


Texto: Ciara Carvalho

Foto: Alexandre Severo / JC

Publicado no JC On Line (11/09/09)

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