O sorriso e os gestos são de um adolescente tímido, de 13 anos. As brincadeiras, também: típicas da idade.
Fantástico: O que você gosta de fazer aqui?
Menino: Jogar bola. empinar pipa.
A diferença são as marcas que a vida já deixou.
É a primeira vez que a Justiça Brasileira autoriza filmagens com o jovem haitiano, vítima de uma quadrilha internacional de coiotes, traficantes de pessoas.
Dezembro de 2009
O menino é encontrado sozinho, sem documentos, na estação Corinthians/Itaquera do metrô de São Paulo.
Dois anos depois, ele ainda lembra o que aconteceu. No vagão, uma mulher o acompanhava.
Menino: Ela desceu, eu vi. Ela me deixou pra trás.
Em abril deste ano, o Fantástico revelou os detalhes dessa história.
O menino morava no Haiti, com o avô e o irmão mais velho.
Os coiotes deveriam levá-lo até a Guiana Francesa, onde vive Dieula Goin, a mãe dos garotos.
A rota passava pelo Brasil. Ao chegar a São Paulo, os criminosos exigiram mais dinheiro. Como a família se recusou a pagar, abandonaram o menino no metrô.
Menino: Eu pensei que ia ficar lá sozinho.
Fantástico: Mas foi o dia inteiro ou algumas horas?
Menino: Foi o dia inteiro.
Para esclarecer o caso, o repórter Marcelo Canellas viajou até o Haiti - e à Guiana Francesa, onde mora a mãe do menino.
Pedimos pra que ela imaginasse cada um dos filhos no lugar da câmera. O resultado foi um desconcertante recado de mãe.
“Eu te amo, meu filho.”
Naquela reportagem, o Fantástico procurou o então governador da Guiana Francesa.
Desde 2003, Dieula é uma imigrante ilegal.
O governador prometeu regularizar a situação dela em três dias e disse que o menino poderia viajar imediatamente para reencontrar a mãe.
Fez até uma brincadeira, ao falar que a bola estaria com o Brasil.
Na época, diante dessa promessa, o juiz brasileiro que cuida do caso chegou a sonhar.
Isso faz sete meses. E nada aconteceu. O governador da Guiana foi substituído.
Dieula não teve a situação regularizada. E o filho ainda não a reencontrou.
Continua em um abrigo para menores, em São Paulo. Por quê?
A embaixada do Haiti no Brasil culpa a mãe. Diz que ela não apresentou a certidão de nascimento do filho.
Segundo a embaixada, isso bloqueia a emissão de um passaporte haitiano para o adolescente.
Mas as autoridades brasileiras não concordam: dizem que a mãe faz o que pode, e que está mesmo difícil encontrar a documentação no Haiti, um país pobre que ainda tenta se recuperar do terremoto de janeiro de 2010.
“Conseguir uma certidão de nascimento no Haiti é uma tarefa hercúlea, praticamente impossível”, diz Fabiana Severo, Defensora Pública.
No Brasil, o jovem haitiano ganhou um apelido: Vu.
Ele tem um documento temporário de identidade, e um passaporte amarelo para estrangeiros, expedidos pelo Brasil.
O governo francês não aceita dar o visto nesse passaporte para que ele possa entrar na Guiana Francesa.
“Eu me surpreendo porque é uma coisa só burocrática. Não tem um motivo. Aparente, não tem nenhum”, conta o juiz Paulo Fadigas.
Enquanto o destino de Vu continua dependendo de decisões dos governos do Haiti e da França, o adolescente segue sob ameaça de coiotes haitianos que já tentaram recuperá-lo em São Paulo.
Os traficantes de pessoas já foram vistos varias vezes aqui na Região Central da cidade. Chegaram a ser seguidos pela policia, mas conseguiram fugir. Por causa disso, a Justiça determinou que o menino tenha escolta policial no abrigo, na escola, onde quer que vá, nas 24 horas do dia.
“Os traficantes de pessoas permanecem livres e o menino é uma testemunha muito importante de todo esquema de tráfico internacional de pessoas. Evidentemente que corre um risco considerável sem escolta”, conta o juiz Paulo Fadigas.
Fantástico: Eles eram violentos com você?
Menino: Às vezes, só.
Fantástico: Esse assunto é chato, né?
No abrigo, em São Paulo, o adolescente se adapta aos poucos.
“Ele é uma criança diferente, que precisou realmente de uma atenção maior”, conta o coordenador do abrigo André Penalva.
As crianças do abrigo influenciaram na escolha do time.
Fantástico: Qual é o seu time?
Menino: Corinthians.
Fantástico: Quem você conhece no time?
Menino: Júlio César, Jorge Henrique, Liedson.
“Ele foi se soltando através de coisas da nossa cultura”, conta o coordenador do abrigo.
Mas uma coisa não mudou. ‘Te amo mãe’, ele escreve o que sente pela mãe.
“É uma necessidade extrema, enorme, de estar junto com a família”, diz o coordenador do abrigo.
A Justiça brasileira chegou a acreditar que tudo estaria resolvido no Natal, outra data significativa. Mas essa esperança não foi repassada ao adolescente. Com medo de uma nova ansiedade, mais dores, frustrações, lágrimas, eles deixaram que o menino continuasse sonhando com o presente, mas sem dia marcado.
A cada 15 dias, Vu conversa com a mãe pela internet. Este foi o último encontro virtual, 10 dias atrás.
As conversas precisam de um tradutor. O jovem haitiano esqueceu o Creole, a língua do seu povo.
Do outro lado da tela, na Guiana Francesa, a mãe quer saber se o filho tem sido um bom menino. Pede notícias da escola, do cotidiano.
A mãe pergunta se ele gostaria de passar o Natal com ela.
A resposta é seca:
“Não.”
A mãe quer saber por quê. De início, o filho não responde. Mas, em seguida, explica.
“Mamãe, eu quero que você passe o Natal aqui”, diz ele.
Dieula diz que gostaria, mas ainda está ilegal na Guiana Francesa e não pode sair de lá.
“Entendi”, diz.
Depois, converso com a mãe.
Fantástico: o que a senhora vai fazer quando a senhora encontrar com ele?
A mãe diz que vai abraçá-lo, beijá-lo.
“Ele quer, no íntimo, que a mãe venha pra cá e ele fique morando aqui com os amigos e traga o irmão do Haiti também”, diz o juiz.
Mas, para as autoridade brasileiras, o melhor, nesse momento, é que o menino vá morar com a mãe.
“Nós não tivemos por parte do governo francês a compreensão humanitária desta causa. O Brasil reivindica que a França acolha esse menino pra que ele possa ficar com a sua mãe, a sua família na Guiana Francesa”, diz Maria do Rosário - Ministra Chefe da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
O governo do Brasil estuda a possibilidade de dar ao adolescente haitiano a cidadania brasileira.
E um passaporte, como o de qualquer cidadão nascido aqui.
Assim, ele poderia entrar sem tanta dificuldade na Guiana Francesa.
São esforços que buscam encerrar uma viagem, iniciada há dois anos.
E cicatrizar as feridas, com um presente bem simples.
“Abraçar a mãe, beijar os irmãos e ter uma vida que todo menino merece: uma vida em família e em comunidade”, diz o juiz.
A embaixada da França disse ao Fantástico que a regularização da situação da mãe do jovem está sendo tratada pelo governo da Guiana Francesa. E que, por isso, a embaixada não pode comentar o caso.
Do Fantástico