Pernambuco em Toledo

Por Joca Souza Leão
Publicado em seu Blog ''Crônicas do Joca"
Postagem Gabriel Diniz


João Cabral de Melo Neto nos contou num poema como encontrou Pernambuco em Málaga. Eu conto aqui, numa crônica, como encontrei Pernambuco em Toledo.

Foi em dezembro de 76. Dezenas de ônibus de turismo, alguns de dois andares, estavam estacionados próximos à estação do trem que nos trouxera de Madri. No exato momento em que eu passava por um deles, abriu-se a porta. De dentro, soou uma grande, enorme, gargalhada. Não era “gargalhada de rapariga”, como nos versos de Alberto Caeiro (“Riu do que disse quem não vejo”); era gargalhada de homem. Grave. A plenos pulmões, diria Maiakóvski. Alegre. Mais: esfuziante! Não tive a menor dúvida. “É Pernambuco gargalhando para o mundo”. Duas gargalhadas iguais? Impossível! Mesmo que o mundo fosse grande, dez, vinte vezes maior, não se ouviria duas iguais. Nem parecidas. E aquela, eu, desde menino, conhecia-lhe o dono.

Tentei subir no ônibus. A guia da excursão me barrou. Foi quando a gargalhada soou ainda mais alta. Em vez de exercitar meu modesto portunhol, disse-lhe em inglês: “Didn’t you hear? It’s Pernambuco calling me up.” Ela não entendeu lhufas. Mas me deixou subir. No primeiro andar, só tinha japonês. Subi pro segundo. Lá no fundo, nos últimos assentos, em meio à gente com cara de conhecida, estava ele, o dono da gargalhada: Jorjão. Jorge Carneiro da Cunha. Ele e Rose. Era Pernambuco, com o que tinha de melhor, na Espanha. Em Toledo. Que grande encontro! Que grande abraço! “E do riso fez-se o pranto”.

Jorge era o Chefe da Casa Civil do Governo Arraes quando estourou o golpe militar de 64. Foi morar em São Paulo. Gostou do exílio. E se deu bem. Ganhou dinheiro como advogado e cultivou amigos. Muitos. Alguns (como Aluízio Falcão, Euriquinho Andrade, Fernando e Sílvio Jungmann, Garibaldi Otávio, João Alexandre Barbosa, João Guerra, Antônio Carlos Cintra do Amaral e Ivanildo Porto) levou daqui, também exilados; outros (como Paulo Vanzolini, Carlinhos Vergueiro, Carlos Paraná, Carlos Alberto Felizola, Lucio Gregori, Jorge Hori e Marcos Pereira) fez por lá. Há quase dez anos não o via. Nem lhe ouvia a gargalhada.

Cinema de Arte no São Luiz, sábado de manhã, aí pelos anos 60 e tanto. A luz apagou. Alguém tossiu. Eu disse: “Conheço essa tosse.” Minha namorada duvidou: “Era só o que faltava, conhecer tosse...” Por via das dúvidas, tossi de volta. E a tosse, a original, tossiu respondendo. E assim, fomos tossindo. Um tossindo e o outro respondendo; até que descobri onde meu irmão Caio (o dono da tosse) e Sônia estavam sentados. Fomos sentar junto.

Outro dia, eu estava num restaurante italiano na Domingos Ferreira, sentado próximo à porta, quando entraram um casal e um camarada alto e gordo. Não os vi de frente. Quando me dei conta, já tinham passado pela minha mesa. Achei que conhecia o camarada gordo. Pensei: se chamar pelo nome e ele se virar, ótimo; se não, é porque não é ele. Arrisquei: “Ricardo Jorge! Reconheci você pelas costas”. E ele, antes de se virar: “Joca Souza Leão! Reconheci você pela voz.” Sabe quem é Ricardo? Filho de Jorjão e Rose. Mora em São Paulo desde 64. Durante todo esse tempo, tínhamos nos encontrado poucas vezes.

“A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele”, disse José Arcádio, pela pena de García Márquez, antes que a terra de Macondo abrigasse o corpo do primeiro Buendia morto. Sete gerações lhe sucederam.

A gente também não é de um lugar, digo eu, enquanto não é capaz de lhe reconhecer as gargalhadas, as tosses, as vozes e os amigos. Esses, até de costas.

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