O grande saco de Papai Noel
Por Roberto da Matta
Quem se interessa pelo saco de Papai Noel? O trenĂ³ puxado pelas renas, suas roupas vermelhas, e casa em pleno Polo Norte - que nos trouxe a chamada "civilizaĂ§Ă£o ocidental" - tĂªm um certo interesse. O mesmo ocorre com a sua logĂstica que intriga os que, no futuro, serĂ£o doutores em gestĂ£o e finanças. Como Ă© que ele faz com aquelas infindĂ¡veis listas de presentes que recebe do mundo inteiro? Como seleciona os presentes certos num mundo que nĂ£o tem mais noĂ§Ă£o de quem Ă© bonzinho ou levado? E num Brasil onde malfeitos sĂ£o bem feitos? Quem, afinal, confecciona os presentes que levam a etiqueta made in China?
DaĂ o inusitado da pergunta que embaraçou meus pais: o que estĂ¡ no gigantesco saco de Papai Noel? Pois se tem presentes, deve tambĂ©m ter venenos.
Num primeiro momento o saco de Papai Noel Ă© o baĂº mĂ¡gico onde cabem todos os desejos. Caixa de Pandora do consumo, o saco produz aquela escuridĂ£o brilhante da publicidade que nos faz querer ter. Ademais, ele nĂ£o estĂ¡ hermeticamente fechado, pois que se abre e fecha no ritmo do nosso desejo infindĂ¡vel de consumir, de ter e de gastar. Papai Noel vem e volta, mas o seu grande saco faz parte de nossas fantasias de riqueza fĂ¡cil.
Quando eu ganhei um Cadillac-rabo-de-peixe de brinquedo, num Natal passado com os Mendonça Vianna, em SĂ£o JoĂ£o Nepomuceno, eu sabia que essa piada de bom gosto havia saĂdo do grande saco de Papai Noel. No mesmo modo que as obrigatĂ³rias Missas do Galo estavam todas dentro daquele apĂªndice natalino que continha tudo. Soube, na mesma Ă©poca, de uma contraditĂ³ria morte em pleno Natal.
O saco de Papai Noel pode ser o mundo e o mundo Ă© o Brasil. Claro que ele Ă© global, mas o seu "aqui e agora" da vida, da doença, do amor, da comida, do Ă³dio, da mentira, do perdĂ£o e da morte ficam aqui - ao alcance desta mesma mĂ£o que tecla esse texto. Cada qual, disse meu pai, tem o saco de Papai Noel que merece. E ganha o que pediu! - completou sĂ©rio.
Eu, entretanto, estava numa crise de desejo. Apaixonado pela irmĂ£ do DĂ©cio (eu beijava respeitoso sua fotografia) eu oscilava entre pedir a Papai Noel um laboratĂ³rio de quĂmica, uma mĂ¡quina fotogrĂ¡fica ou um trem elĂ©trico, esse brinquedo que foi o sonho de todos os meninos de minha idade. Em nossa rua, apenas vi o tal trem com um filho balofo de "alto funcionĂ¡rio pĂºblico" que, graças a uma dessas sinecuras nacionais, havia residido nos Estados Unidos. Afora isso, todos ganhavam sempre o que nĂ£o haviam pedido.
Vi logo que era raro receber exatamente o que se desejava. O primeiro erro do desejo Ă© imaginar que ele pode ser satisfeito pelo saco de Papai Noel. Um saco que ao longo da vida vai mudando de significado.
Dentro dele hĂ¡ de tudo. Tem o automĂ³vel comprado em 700 prestações, tem a dĂvida impagĂ¡vel do cartĂ£o, tem as ONGs nutridas por verbas governamentais ou por uma prefeitura ou ministĂ©rio. O saco pode tambĂ©m transformar-se num casamento desandado ou um copo de uĂsque com soda. Ou ainda numa doença ou loteria. Mais das vezes, Ă© apenas um simples desejo de tomar um copo d"Ă¡gua ou comer um pĂ£o quentinho com manteiga. O saco vai mudando conforme a vida que depende do mundo e da idade que faz esse mundo. Crianças, cabemos nele; adultos, temos que carregĂ¡-lo nas costas e ele Ă s vezes fica muito pesado. Quando somos jovens, ele Ă© esvaziado pelos nossos desejos. E no final da vida, quando o passado conta mais do que o presente, o futuro nĂ£o existe e o ressentimento do que poderĂamos ter recebido Ă© insanĂ¡vel e, por isso, aceito; o saco do Papai Noel Ă© um saco!
HĂ¡ no mundo um sĂ©rio problema com merecimentos.
Um frade conhecido meu achava que se havia justiça quando um pai punia um filho notoriamente errado, deveria haver uma justiça cĂ³smica. Se hĂ¡ leis em algum lugar, dizia ele, deve haver leis (e justiça) em todos os lugares. A propĂ³sito, a frase Ă© do antropĂ³logo Edward B. Tylor e serve como epĂgrafe para o livro As Estruturas Elementares do Parentesco, que transformou Claude LĂ©vi-Strauss em LĂ©vi-Strauss e que foi publicado no Brasil numa coleĂ§Ă£o que dirigi.
Pois bem. Como um menino no Natal, o frade buscou essa lei que regeria os elos entre bem-aventuranças e sofrimentos - aquilo que os filĂ³sofos chamam de teodiceia - e nada descobriu. Na sua parĂ³quia, numa gigantesca favela do Rio de Janeiro, ele registrava que os generosos, os trabalhadores, os honestos e os que tinham fĂ© eram alvos de assaltos, falcatruas, falsas promessas, deslizamentos e tragĂ©dias; ao passo que os mentirosos, os hipĂ³critas e os vis viviam bem. Alguns ficavam muito ricos, seus prĂ³ximos estavam bem e, mais que isso, eles prĂ³prios se achavam o sal da terra.
SerĂ¡ que Papai Noel recebeu mesmo a minha carta ou ela se extraviou tangida pelos ventos fortes e gelados do Ă¡rtico? SerĂ¡ que ele leu o que eu queria ou simplesmente leu e resolveu nĂ£o me dar o que pedi? SerĂ¡, porĂ©m, que no ano que vĂªm (se houver ano que vĂªm...) eu vou ganhar o que nĂ£o ganhei neste ano?
SerĂ¡ que o grande saco de Papai Noel vai nos envergonhar novamente em 2012, fazendo crescer nossas favelas que irĂ£o ficar do tamanho da França? Com a palavra os que acreditam. E acreditar faz parte da aventura humana na qual nenhum de nĂ³s entra por querer. Trata-se de um saco infinito. Um saco de Papai Noel...
Quem se interessa pelo saco de Papai Noel? O trenĂ³ puxado pelas renas, suas roupas vermelhas, e casa em pleno Polo Norte - que nos trouxe a chamada "civilizaĂ§Ă£o ocidental" - tĂªm um certo interesse. O mesmo ocorre com a sua logĂstica que intriga os que, no futuro, serĂ£o doutores em gestĂ£o e finanças. Como Ă© que ele faz com aquelas infindĂ¡veis listas de presentes que recebe do mundo inteiro? Como seleciona os presentes certos num mundo que nĂ£o tem mais noĂ§Ă£o de quem Ă© bonzinho ou levado? E num Brasil onde malfeitos sĂ£o bem feitos? Quem, afinal, confecciona os presentes que levam a etiqueta made in China?
DaĂ o inusitado da pergunta que embaraçou meus pais: o que estĂ¡ no gigantesco saco de Papai Noel? Pois se tem presentes, deve tambĂ©m ter venenos.
Num primeiro momento o saco de Papai Noel Ă© o baĂº mĂ¡gico onde cabem todos os desejos. Caixa de Pandora do consumo, o saco produz aquela escuridĂ£o brilhante da publicidade que nos faz querer ter. Ademais, ele nĂ£o estĂ¡ hermeticamente fechado, pois que se abre e fecha no ritmo do nosso desejo infindĂ¡vel de consumir, de ter e de gastar. Papai Noel vem e volta, mas o seu grande saco faz parte de nossas fantasias de riqueza fĂ¡cil.
Quando eu ganhei um Cadillac-rabo-de-peixe de brinquedo, num Natal passado com os Mendonça Vianna, em SĂ£o JoĂ£o Nepomuceno, eu sabia que essa piada de bom gosto havia saĂdo do grande saco de Papai Noel. No mesmo modo que as obrigatĂ³rias Missas do Galo estavam todas dentro daquele apĂªndice natalino que continha tudo. Soube, na mesma Ă©poca, de uma contraditĂ³ria morte em pleno Natal.
O saco de Papai Noel pode ser o mundo e o mundo Ă© o Brasil. Claro que ele Ă© global, mas o seu "aqui e agora" da vida, da doença, do amor, da comida, do Ă³dio, da mentira, do perdĂ£o e da morte ficam aqui - ao alcance desta mesma mĂ£o que tecla esse texto. Cada qual, disse meu pai, tem o saco de Papai Noel que merece. E ganha o que pediu! - completou sĂ©rio.
Eu, entretanto, estava numa crise de desejo. Apaixonado pela irmĂ£ do DĂ©cio (eu beijava respeitoso sua fotografia) eu oscilava entre pedir a Papai Noel um laboratĂ³rio de quĂmica, uma mĂ¡quina fotogrĂ¡fica ou um trem elĂ©trico, esse brinquedo que foi o sonho de todos os meninos de minha idade. Em nossa rua, apenas vi o tal trem com um filho balofo de "alto funcionĂ¡rio pĂºblico" que, graças a uma dessas sinecuras nacionais, havia residido nos Estados Unidos. Afora isso, todos ganhavam sempre o que nĂ£o haviam pedido.
Vi logo que era raro receber exatamente o que se desejava. O primeiro erro do desejo Ă© imaginar que ele pode ser satisfeito pelo saco de Papai Noel. Um saco que ao longo da vida vai mudando de significado.
Dentro dele hĂ¡ de tudo. Tem o automĂ³vel comprado em 700 prestações, tem a dĂvida impagĂ¡vel do cartĂ£o, tem as ONGs nutridas por verbas governamentais ou por uma prefeitura ou ministĂ©rio. O saco pode tambĂ©m transformar-se num casamento desandado ou um copo de uĂsque com soda. Ou ainda numa doença ou loteria. Mais das vezes, Ă© apenas um simples desejo de tomar um copo d"Ă¡gua ou comer um pĂ£o quentinho com manteiga. O saco vai mudando conforme a vida que depende do mundo e da idade que faz esse mundo. Crianças, cabemos nele; adultos, temos que carregĂ¡-lo nas costas e ele Ă s vezes fica muito pesado. Quando somos jovens, ele Ă© esvaziado pelos nossos desejos. E no final da vida, quando o passado conta mais do que o presente, o futuro nĂ£o existe e o ressentimento do que poderĂamos ter recebido Ă© insanĂ¡vel e, por isso, aceito; o saco do Papai Noel Ă© um saco!
HĂ¡ no mundo um sĂ©rio problema com merecimentos.
Um frade conhecido meu achava que se havia justiça quando um pai punia um filho notoriamente errado, deveria haver uma justiça cĂ³smica. Se hĂ¡ leis em algum lugar, dizia ele, deve haver leis (e justiça) em todos os lugares. A propĂ³sito, a frase Ă© do antropĂ³logo Edward B. Tylor e serve como epĂgrafe para o livro As Estruturas Elementares do Parentesco, que transformou Claude LĂ©vi-Strauss em LĂ©vi-Strauss e que foi publicado no Brasil numa coleĂ§Ă£o que dirigi.
Pois bem. Como um menino no Natal, o frade buscou essa lei que regeria os elos entre bem-aventuranças e sofrimentos - aquilo que os filĂ³sofos chamam de teodiceia - e nada descobriu. Na sua parĂ³quia, numa gigantesca favela do Rio de Janeiro, ele registrava que os generosos, os trabalhadores, os honestos e os que tinham fĂ© eram alvos de assaltos, falcatruas, falsas promessas, deslizamentos e tragĂ©dias; ao passo que os mentirosos, os hipĂ³critas e os vis viviam bem. Alguns ficavam muito ricos, seus prĂ³ximos estavam bem e, mais que isso, eles prĂ³prios se achavam o sal da terra.
SerĂ¡ que Papai Noel recebeu mesmo a minha carta ou ela se extraviou tangida pelos ventos fortes e gelados do Ă¡rtico? SerĂ¡ que ele leu o que eu queria ou simplesmente leu e resolveu nĂ£o me dar o que pedi? SerĂ¡, porĂ©m, que no ano que vĂªm (se houver ano que vĂªm...) eu vou ganhar o que nĂ£o ganhei neste ano?
SerĂ¡ que o grande saco de Papai Noel vai nos envergonhar novamente em 2012, fazendo crescer nossas favelas que irĂ£o ficar do tamanho da França? Com a palavra os que acreditam. E acreditar faz parte da aventura humana na qual nenhum de nĂ³s entra por querer. Trata-se de um saco infinito. Um saco de Papai Noel...
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