Se Deus quiser

Por Joca Souza Leão

Coisa boa era acreditar em Deus. Qualquer problema, tinha a quem recorrer. Não para botar a culpa Nele por algo errado, mas, ao contrário, para Lhe pedir socorro, “valha-me Deus!”; manter a esperança, “se Deus quiser!”; rogar proteção, “Deus me defenda!”; e para Lhe reconhecer o feito, “graças a Deus!”.

Naquele tempo se comungava em jejum. E não podia mastigar a hóstia; se mastigasse, ficava com a boca cheia de sangue, sangue de Jesus. Carmem, uma prima de minha mãe, solteirona e carola, foi quem explicou a mim e a Caio, meu irmão, nas aulas de catecismo que antecederam a nossa primeira comunhão: “é sacrilégio”. Sacrilégio. Eita palavrinha danada, impregnada de maldade, crueldade e culpa. A gente não sabia bem o que significava, mas coisa boa era que não podia ser. Agora, o pior de tudo, mesmo, seria o sangue escorrer pela boca na frente de todo mundo. Alguém, por certo, denunciaria aos gritos, dedo indicador apontado para mim: “Aquele menino gordinho mastigou o corpo de Jesus”. E a igreja toda em coro: “Assassino! Assassino!” Por isso, todo cuidado era pouco.

A gente acordava às seis, sem despertador nem nada, e ia direto pro banho sem que precisasse ninguém mandar. Vestia a calça-curta e a camisa bem engomada, sapato Vulcabras, meia soquete no meio da canela e Gumex no cabelo. Duro era ignorar a mesa com o café da manhã já servido e seguir em frente em jejum. Mas se a fé move montanhas, quem dirá uma fomezinha passageira, com hora certa pra acabar. (Mas que fome!).

Missa das sete, na capelinha do Hospital Centenário (hoje, do IPSEP). A gente tinha que chegar às seis e meia pra dar tempo de confessar os pecados e rezar as penitências antes da missa começar. “Fiz coisa feia.” “Sozinho ou acompanhado?”, queria saber o velho frade capuchinho, cuja batina não via água e sabão há séculos. Normalmente era “sozinho”. Mas, se pintasse um “acompanhado”, ele queria saber tudo direitinho: “Com a mão ou como?” “Com menino ou com menina?” Quanto mais se falasse, mais ele queria saber. “Qual a idade dela?” A gravidade do pecado, suponho, dependia justamente dos detalhes. “Sozinho”, por exemplo, valia três ave-marias e três pais-nossos de penitência. Enquanto “acompanhado” não ficava nunca por menos de dez de cada uma, de joelhos. E se mentisse e comungasse, pecado mortal. Ou seja, se morresse, inferno direto, sem escala.

Missa em latim e celebrante de costas para os fiéis. Era assim. O “mistério” da santa missa ficava ainda mais misterioso. Durante a consagração, todos ficavam de joelhos e olhavam para baixo. Era pecado, creio, olhar para o altar. (Uma vez, sem querer, olhei. Por via das dúvidas, não comunguei). Silêncio sepulcral. Ouvia-se unicamente a campainha do sacristão e a voz do frade: “Qui pridie quam pateretur, accepit panem in sanctas ac venerabilis manus suas, et elevatis oculis in coelum ad te Deum, (...) hoc est enim corpus meum”. (Nesse momento, o sacristão caprichava na campainha. E eu ficava arrepiado da cabeça aos pés).

Hoje, recebe-se a hóstia na mão. Naquele tempo, era o celebrante quem a depositava sobre a língua da gente. Eu abria a boca e estirava a língua o mais que podia, para evitar um acidente provocado pelos dentes. Alguém havia me ensinado um truque. Botar a língua pra cima e pressioná-la cuidadosamente contra o céu da boca, para que ela, a hóstia, ficasse lá, colada, sã e salva até se dissolver por completo.

Mas acho que o frade capuchinho começou a me marcar. Ora, se os pecados eram sempre os mesmos, por que a cada confissão ele aumentava as penitências? Implicância. Tipo: “Ou você para de fazer coisa feia ou vai ficar com calo nos joelhos de tanta penitência”.

Para evitar uma artrose prematura da patela (rótula, também conhecida por bolacha do joelho), ao invés de parar com um, parei com o outro. Parei foi de ir à missa.

Postada por Gabriel Diniz

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